sexta-feira, 13 de junho de 2014

CONTOS ANACRÔNICOS: HISTÓRIAS DO PROFESSOR DE PORTUGUÊS DE SÃO CAJÁ DO MATO DENTRO

 A LOUCA

 Existe uma cidadezinha em Minas Gerais chamada São Cajá do Mato Dentro. Fica a 350 quilômetros de Belo Horizonte (logo ali, como dizem alguns habitantes da região).  Nessa cidadezinha vive um Professor de Português que, depois de visitar os principais centros históricos do Estado (como São José da Lapa e Vespasiano) resolveu se aposentar e morar no interior. Mas não parou de trabalhar. De Segunda a Sexta-feira continua a exercer seu ofício de professor, dando aulas particulares ou em grupos para que os habitantes da região possam aprender a se comunicar melhor no idioma padrão.

Mas não são todos os dias que vemos o Professor exercendo sua função. Geralmente, nos fins de semana, ele gosta de passear de tardinha pelo centro da cidade (uma pracinha, um bar e uma igreja) onde conversa com os habitantes locais. Estando a praça meio vazia neste Domingo, andou acompanhado de um exemplar de Dom Casmurro, do seu escritor preferido Machado de Assis, além do seu bloco de anotações. Sentando-se num dos bancos, tirou seus óculos, abriu o bloco e começou a escrever:

“Leitura Número 85 do Livro Dom Casmurro de ASSIS, Machado de. Pude perceber nessa leitura que...”

Enquanto prosseguia em sua análise, eis que uma conhecida louca que de vez em quando se desbaratava por ali surgiu do nada, completamente bêbada. Era inofensiva na maioria das vezes, mas muito incômoda.

- Eu mato aquele cretino! – gritou ela dando giros em torno de si, entrando na pracinha.

As janelas das casas começaram a se abrir e cabeças curiosas surgiram por entre as aberturas. O Professor, porém, permanecia impassível em sua leitura e nem sequer se mexeu.

- Vou acabar com a vida dele. O maldito que me trocou por aquela vaca!  Cretino!! Eu mato! Eu mato ele e todo mundo que aparecer na minha frente, eu mato! MATO!

Gritava cada vez mais forte, andando entre tropeços, a roupa maltrapilha, rasgada, o cabelo desgrenhado, rebelde, apontando para cima como chifres feitos de palha de aço. Os olhos vermelhos, a boca vazia de dentes, e os poucos que tinham eram amarelos e podres.

A Louca ainda não tinha se tocado da presença de mais uma pessoa na praça. O Professor, absorvido em sua leitura, sequer chegou a levantar os olhos para observar quem era a responsável por toda aquela gritaria que, aparentemente, não o perturbava. Quando ela viu que havia alguém ali perto, interrompeu o escândalo e começou a estudá-lo em silêncio.

- Foi você! – gritou novamente. – Você, o infeliz que me arruinou e me roubou tudo!!

Gritava histérica. Os homens do bar já haviam saído e se aproximavam da cena, preocupados com a reação da Louca. Nunca a tinham visto tão alterada, muito menos alguém permanecer tão quieto diante de tamanho escândalo. Todos conheciam o bom senso e a famosa paciência do Professor de Português, mas não sabiam que ele pudesse permanecer calmo diante daquela cena constrangedora.

- Larga isso e vem me encarar agora. Cadê aquela vadia, hein? Largou você também? Igual você fez comigo. Bem feito, agora eu quero tudo o que você me levou, tudo!!!

- Ei Professor. – gritavam alguns. – Saia daí, essa mulher está muito alterada hoje. Ela pode atacar o senhor.

Ele que até então não havia esboçado nenhuma reação tirou vagarosamente os óculos e fechou o livro, encarando a mulher sem demonstrar nenhuma surpresa.

- Madame, por favor. Os seus gritos estão prejudicando enormemente minha leitura. Por que está tão aborrecida?

- Eu quero tudo de volta, seu cretino. Seu traidor! Você me traiu e me levou tudo. TUDO!!

- Bem, se a senhora está me confundindo com alguém, devo lhe dizer que acabei de me mudar para este lugar e não posso ser quem você pensa que eu sou. Sinto muito!

- Eu sabia, você continua sendo um covarde, UM COVARDE!!

- Olha, eu estou num momento muito importante, lendo um livro de Machado de Assis. Se a senhora puder deixar essa conversa pra mais tarde...

- Um viado que você é. – Gritava a Louca. – Viadão! Esse homem é um VIADÃO, gente!

A Louca ria e gritava fazendo gestos obscenos, tentando chamar a atenção do Professor de Português. Ele, por sua vez, recolocou os óculos e retornou à sua leitura, inalterado. Os habitantes da região já começavam a se impressionar.

- Esse Professor tem moral mesmo.

- Nunca vi alguém ser tão calmo quanto ele.

- Se fosse comigo eu já teria arrebentado a cara dessa vadia.

A cena se desenrolava a cada minuto ganhando ares cada vez mais surreais. De um lado uma louca completa se descontrolava girando e se descabelando enquanto proferia todo tipo de ofensas e palavrões no ouvido do Professor. Por outro lado, ele permanecia imóvel, seus olhos desfilando pelas linhas do livro, quieto, incólume ao estardalhaço que se desenvolvia ao seu redor, como a estar no silêncio de uma biblioteca. Algumas mulheres gritavam das janelas pedindo que alguém tirasse a Louca de perto do Professor, pois ela poderia machucá-lo. Mas mesmo os mais corajosos não se aventuravam a chegar perto dela, pois jamais a tinham visto tão zangada e tão descontrolada como agora.

- Quer saber, homem? – continuava a mendiga. – Você não vale NADA! Perdi meu tempo com você. Você é um frouxo, um viadão mesmo. Tão viadão quanto esse Machado que você tá lendo aí.

- Como é que é? – perguntou o Professor levantando os olhos do livro.

- Você e esse cara que escreveu esse livro aí são dois VIADÃO!!! Ah, ah, ah, ah...

Foram necessários cinco homens para tirar o Professor de cima da Louca. Ela foi levada às pressas para o único hospital da cidade, em coma.
 

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