A LOUCA
Existe
uma cidadezinha em Minas Gerais chamada São Cajá do Mato Dentro. Fica a 350
quilômetros de Belo Horizonte (logo ali, como dizem alguns habitantes da
região). Nessa cidadezinha vive um
Professor de Português que, depois de visitar os principais centros históricos
do Estado (como São José da Lapa e Vespasiano) resolveu se aposentar e morar no
interior. Mas não parou de trabalhar. De Segunda a Sexta-feira continua a
exercer seu ofício de professor, dando aulas particulares ou em grupos para que
os habitantes da região possam aprender a se comunicar melhor no idioma padrão.
Mas
não são todos os dias que vemos o Professor exercendo sua função. Geralmente,
nos fins de semana, ele gosta de passear de tardinha pelo centro da cidade
(uma pracinha, um bar e uma igreja) onde conversa com os habitantes locais.
Estando a praça meio vazia neste Domingo, andou acompanhado de um exemplar de Dom Casmurro, do seu escritor preferido
Machado de Assis, além do seu bloco de anotações. Sentando-se num dos bancos,
tirou seus óculos, abriu o bloco e começou a escrever:
“Leitura
Número 85 do Livro Dom Casmurro de
ASSIS, Machado de. Pude perceber nessa leitura que...”
Enquanto
prosseguia em sua análise, eis que uma conhecida louca que de vez em quando se
desbaratava por ali surgiu do nada, completamente bêbada. Era inofensiva na maioria
das vezes, mas muito incômoda.
-
Eu mato aquele cretino! – gritou ela dando giros em torno de si, entrando na
pracinha.
As
janelas das casas começaram a se abrir e cabeças curiosas surgiram por entre as
aberturas. O Professor, porém, permanecia impassível em sua leitura e nem
sequer se mexeu.
-
Vou acabar com a vida dele. O maldito que me trocou por aquela vaca! Cretino!! Eu mato! Eu mato ele e todo mundo
que aparecer na minha frente, eu mato! MATO!
Gritava
cada vez mais forte, andando entre tropeços, a roupa maltrapilha, rasgada, o
cabelo desgrenhado, rebelde, apontando para cima como chifres feitos de palha
de aço. Os olhos vermelhos, a boca vazia de dentes, e os poucos que tinham eram
amarelos e podres.
A
Louca ainda não tinha se tocado da presença de mais uma pessoa na praça. O
Professor, absorvido em sua leitura, sequer chegou a levantar os olhos para
observar quem era a responsável por toda aquela gritaria que, aparentemente,
não o perturbava. Quando ela viu que havia alguém ali perto, interrompeu o
escândalo e começou a estudá-lo em silêncio.
-
Foi você! – gritou novamente. – Você, o infeliz que me arruinou e me roubou
tudo!!
Gritava
histérica. Os homens do bar já haviam saído e se aproximavam da cena,
preocupados com a reação da Louca. Nunca a tinham visto tão alterada, muito
menos alguém permanecer tão quieto diante de tamanho escândalo. Todos conheciam o
bom senso e a famosa paciência do Professor de Português, mas não sabiam que
ele pudesse permanecer calmo diante daquela cena constrangedora.
-
Larga isso e vem me encarar agora. Cadê aquela vadia, hein? Largou você também?
Igual você fez comigo. Bem feito, agora eu quero tudo o que você me levou,
tudo!!!
-
Ei Professor. – gritavam alguns. – Saia daí, essa mulher está muito alterada
hoje. Ela pode atacar o senhor.
Ele
que até então não havia esboçado nenhuma reação tirou vagarosamente os óculos e
fechou o livro, encarando a mulher sem demonstrar nenhuma surpresa.
-
Madame, por favor. Os seus gritos estão prejudicando enormemente minha leitura.
Por que está tão aborrecida?
-
Eu quero tudo de volta, seu cretino. Seu traidor! Você me traiu e me levou
tudo. TUDO!!
-
Bem, se a senhora está me confundindo com alguém, devo lhe dizer que acabei de
me mudar para este lugar e não posso ser quem você pensa que eu sou. Sinto
muito!
-
Eu sabia, você continua sendo um covarde, UM COVARDE!!
-
Olha, eu estou num momento muito importante, lendo um livro de Machado de
Assis. Se a senhora puder deixar essa conversa pra mais tarde...
-
Um viado que você é. – Gritava a Louca. – Viadão! Esse homem é um VIADÃO,
gente!
A
Louca ria e gritava fazendo gestos obscenos, tentando chamar a atenção do
Professor de Português. Ele, por sua vez, recolocou os óculos e retornou à sua
leitura, inalterado. Os habitantes da região já começavam a se impressionar.
-
Esse Professor tem moral mesmo.
-
Nunca vi alguém ser tão calmo quanto ele.
-
Se fosse comigo eu já teria arrebentado a cara dessa vadia.
A
cena se desenrolava a cada minuto ganhando ares cada vez mais surreais. De um
lado uma louca completa se descontrolava girando e se descabelando enquanto
proferia todo tipo de ofensas e palavrões no ouvido do Professor. Por outro
lado, ele permanecia imóvel, seus olhos desfilando pelas linhas do livro,
quieto, incólume ao estardalhaço que se desenvolvia ao seu redor, como a estar
no silêncio de uma biblioteca. Algumas mulheres gritavam das janelas pedindo
que alguém tirasse a Louca de perto do Professor, pois ela poderia machucá-lo.
Mas mesmo os mais corajosos não se aventuravam a chegar perto dela, pois jamais
a tinham visto tão zangada e tão descontrolada como agora.
-
Quer saber, homem? – continuava a mendiga. – Você não vale NADA! Perdi meu
tempo com você. Você é um frouxo, um viadão mesmo. Tão viadão quanto esse
Machado que você tá lendo aí.
-
Como é que é? – perguntou o Professor levantando os olhos do livro.
-
Você e esse cara que escreveu esse livro aí são dois VIADÃO!!! Ah, ah, ah,
ah...
Foram
necessários cinco homens para tirar o Professor de cima da Louca. Ela foi levada
às pressas para o único hospital da cidade, em coma.
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