segunda-feira, 5 de maio de 2014

A construção de um farmacêutico

Esta postagem foi desenvolvida como um trabalho para a disciplina: Farmácia e Sociedade, do Professor Edson Perini da Faculdade de Farmácia - UFMG.

Em 31 de julho de 2014 estarei completando 33 anos de existência. Nessa idade, o maior homem da História Ocidental já tinha andado sobre as águas, multiplicado pães e peixes, transformado água em vinho, morrido e, de acordo com seus seguidores, ressuscitado. Ou seja, para alguns, é tempo suficiente para cumprir a mais difícil das missões. Mais contemporaneamente, conheço jovens, com a mesma idade ou menos, concluindo seus doutorados, ou mesmo escutando minhas reclamações nos consultórios médicos, odontológicos ou farmacêuticos, consertando meu carro ou me atendendo nos consultórios de advocacia.

A construção de uma carreira pode ser uma história simples para muitas pessoas que receberam a luz assim que nasceram. Para outros, a Estrela de Davi não aponta o caminho de maneira tão clara. Nestes 33 anos,  acredito sim que poderia estar já usufruindo de uma carreira farmacêutica em constante acensão, mas uma história de vida muito singular me deixou, agradecidamente, no primeiro período de faculdade em pleno ano de 2014.

Por que vim parar aqui logo agora? Não é uma resposta difícil, ainda que a história seja longa. Sou o filho mais velho de três irmãos que foram criados juntos, pois nascemos praticamente "um atrás do outro". Meu irmão do meio completou 31 anos em Fevereiro, e o caçula completará 30 anos em Agosto. Crescemos na cidade de Pedro Leopoldo, na região metropolitana de Belo Horizonte. Tivemos uma infância muito humilde, embora não fosse necessariamente pobre. Roupa, comida, vestuário, e até uns bons brinquedos nunca nos faltaram. mas não tivemos uma vida de luxo.

Três dos grandes pilares da minha educação foram o Respeito, o Trabalho e o Estudo. Estes valores pétreos eram rigidamente inseridos em nosso inconsciente através dos conselhos e ordens sábias de minha mãe, que sempre acompanhou muito de perto toda nossa a formação psíquica, social e moral. Desde muito pequenos, gostávamos de jogos de quebra-cabeças, de coletar bichos no quintal e eu, particularmente, desenvolvi um interesse especial por livros e contos. Comecei a escrever histórias infantis muito criança, e ainda no 1º grau (atual Ensino Fundamental), minhas redações eram expostas pelos professores para toda a escola.

Quando concluí a 8ª série (último ano do Ensino Fundamental) minha mãe me inscreveu num exame de seleção para os cursos técnicos do Coltec e Cefet, e fiz a prova mesmo sem saber para quê mesmo estava fazendo. Fui aprovado no Coltec. E comecei a estudar com a intenção de me formar como técnico em eletrônica, que era o que os garotos da minha idade faziam na época. Mas o choque com as ciências exatas mudariam meus planos, para o desespero do meu pai. Fascinado com as ciências aplicadas, optei pelo curso técnico de Química, e me ingressei no caminho mais tortuoso (e não menos exato...) que o Colégio Técnico tinha a oferecer...

Foram Anos Incríveis, exatamente como naquele seriado exibido pela Rede Minas nos anos 80 sobre a vida de Kevin Arnold, o adolescente atrapalhado dos anos 60. O Coltec, além de me capacitar para o exercício de minha nova profissão, me ajudou a desenvolver outras habilidades adormecidas, como o prazer pela arte, da apreciação estética da Literatura, pelo desafio de aprender uma nova língua... E todo esse aparato foi utilizado na escolha do meu curso de Graduação: Letras.

Fui aprovado no Vestibular de 2002, mas já contava com pelo menos dois anos de experiência como Técnico em Química em uma fábrica de cimentos quando consegui emprego em uma Indústria de Diagnósticos em desenvolvimento na Fundação Biominas. Esse ano foi realmente especial para mim, pois foi quando, numa paixão adolescente desenfreada, decidi me casar com a garota que conhecia a menos de um ano, e comecei a  seguir rumos díspares que iriam modificar meus planos completamente. Apeguei-me à indústria de diagnósticos como um bote salva-vidas que deveria me manter emerso  até que concluísse minha Graduação em Letras, mas com o passar do tempo, meu domínio das técnicas de manipulação de reagentes de ELISA e Bioquímica começaram a se destacar.

Formei-me em 2007, mais precisamente no dia 31 de Julho de 2007, dia em que completei 26 anos de idade. Já era pai de uma garotinha de dois anos, havia dado entrada em um apartamento e tinha carteira assinada há pelo menos cinco anos em uma mesma empresa. Também já havia recebido uma promoção e quatro aumentos de salário. Abandonar tudo isso por uma carreira completamente nova, parecia uma loucura, algo muito irresponsável. Minha esposa também ansiava por poder concluir seus estudos, e minha participação nas atividades familiares era fundamental. Meu diploma, por ora, teve que ser arquivado.


Continuei trabalhando com diagnósticos sempre no setor produtivo, mas meu envolvimento com a área me deixava cada vez mais interessado em conhecer os mecanismos pelos quais os reagentes se combinavam formando produtos. E meu destaque era evidente. De Técnico de Fabricação fui promovido à Encarregado de Produção, e então conheci o homem que finalmente iria sacramentar minha carreira de uma vez por todas.

Toda história tem um mito, um ícone, uma pessoa especial e um momento singular que define o que somos de modo extraordinário. Essa pessoa, eu não poderia deixar de mencionar: meu ex-gerente e grandioso amigo, o senhor Carlos Alberto Rosa. Ele assumiu a diretoria da minha empresa numa fase de grande transição, um momento em que a Supervisora de Produção abandonava o barco, tomada pela estafa, deixando um vácuo estratégico que não poderia ser substituído por alguém que não conhecesse profundamente os processos produtivos da empresa. Apesar da minha formação imatura, o "Seu Carlos", como ficou conhecido, reconheceu em mim as virtudes que ele buscava para seu novo Supervisor de Produção, e tão logo pudemos ter nossa primeira conversa ele me revelou seus objetivos. Eu, ao contrário, tinha outros planos: migrar de vez para o setor de Pesquisa e Desenvolvimento que começava a se formar na empresa. Fizemos então um acordo de cavalheiros: eu assumiria temporariamente a Supervisão de Produção e me inscreveria em algum curso superior da área, enquanto ele buscava no mercado alguém que pudesse me substituir quando eu já tivesse bagagem suficiente para investir em Pesquisa.

Nessa época, meu casamento já tinha se esvaído, e me joguei enlouquecidamente na jornada. Trabalhava todos os dias da semana, sábados, domingos, feriados, não raro das sete da manhã às oito da noite. E o "Seu Carlos" cumpriu uma parte do combinado. Contratou um Pesquisador e um Supervisora de Produção, ambos com muitíssima experiência, e cada um fez crescer ainda mais minhas experiências e expectativas em relação ao futuro.

Os recém-contratados eram casados, e com o tempo fui ganhando a afeição dos dois. Nos tornamos amigos, eu frequentava a casa do casal e durante esse período eu tive minha primeira conquista: a aprovação no Vestibular da UFMG 2010 para o curso de Química.

Estávamos todos cumprindo nossa parte do "contrato", mas uma conversa com o "Seu Carlos" em 27 de Julho de 2010 mudou tudo. Ele me chamou em sua sala por volta das 18h30, e depois de discutirmos pequenas frivolidades, perguntei sobre o estado de saúde da Supervisora, que havia se internado dias atrás com uma forte dor de cabeça...


- Ela morreu...


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Pela primeira vez eu vi aquele homem formado na Aeronáutica, e acumulado dezenas de títulos nas áreas de Física e Gestão Empresarial, se desmanchar em lágrimas. Então o AVC - ele novamente - havia quebrado de forma silenciosa e cruel um elo que se formara com tanto esforço. Não perdíamos só uma profissional, perdíamos uma amiga, um suporte, alguém que nos fazia sentir que tudo iria dar certo. E o golpe foi duro demais.

Tive que voltar à minha equipe e reconfortá-la numa fase em que não acreditava em absolutamente mais nada. E o "Seu Carlos", não suportando a pressão, acabou sendo substituído. A nova gestão acreditava que tudo o que a gente realizava até então estava ultrapassado, e com o apoio do Pesquisador viúvo, trataram de me afastar da empresa também, após nove anos de dedicação.

Por sorte, a experiência acumulada me tirou da calçada dos desempregados em rápidos dois meses. Apesar de toda minha trajetória profissional parecer loucura, consegui me fazer convencer na empresa na qual trabalho atualmente, e que me deu a chance e investir no sonho que sempre busquei: Pesquisa e Desenvolvimento. E os campos de atuação da empresa - também de diagnósticos - me fizeram perceber que a escolha da graduação talvez tivesse sido equivocada, e que o curso de Farmácia me tornaria muito mais capacitado a atender as expectativas da minha equipe atual. 

Com carta branca para ser criativo, começar do zero e, de certa forma, fazer o que "eu quiser", hoje trabalho no "emprego dos sonhos" dos farmacêuticos e dos biomédicos. E finalmente, quando acreditava que chegaria o momento de colher de alguns dos frutos que plantei, me coloco este novo desafio: começar (quase) do zero uma graduação rodeado de colegas com seus dezoito e vinte anos que sequer eram nascidos quando a Seleção Brasileira conquistou o Tetracampeonato de Futebol na Copa do Mundo de 94.

E é somente retirando forças de onde só Deus e o ciclo de Krebs conseguem explicar, me proponho a repensar e discutir de maneira ampla o meu papel na sociedade, enquanto profissional da saúde, a tentar entender o porquê da existência desse profissional, a que órgãos ele está associado e como funcionam estes órgãos. Procuro entender também essa complexidade que é o ser humano, em quantos níveis se organiza, em quantas partes pode ser dividido, qual a nossa ligação com essa natureza que nos cerca. Tanto num nível macroscópico, em seus aspectos morfológicos, quanto microscópio, em aspectos bioquímicos, essa "máquina que muitas vezes precisa ser consertada" fornece argumentos fantásticos para se acreditar na existência de um Ser Superior e ao mesmo tempo para se duvidar dele.  E, se o desafio de se chegar ao final deste curso, em jornada dupla, às vésperas, quem sabe, de completar meus quarenta anos de existência seja meu legado, que ele seja conduzido com o mesmo otimismo e bom humor que, em última instância, é também um dos pilares que me fizeram chegar até aqui e me fazem seguir em frente. 


Há noites em que o único pensamento que me vem à mente é desistir. Aquelas noites em que não se consegue conciliar o sono, pois dormir parece desperdiçar demais um tempo em que se deveria estar estudando. Mas, por um desses motivos singulares que não se pode explicar, dentro ou fora da Faculdade existem anjos que nos guiam para a frente, que não nos deixam jamais desistir, que seguram a onda quando a sensação é a de que o mundo todo deveria explodir. 

Existe muita coisa por trás do meu sonho de ser farmacêutico. Nunca quis ser médico, embora tenha um irmão na família (o caçula, de 30 anos), já graduado e que vive financeiramente muito bem, obrigado! Mas não é o que me seduz. Eu quero sim, ganhar bem, dirigir um carrinho legal, me casar novamente com a garota dos meus sonhos (e que já conquistei!). Mas as pessoas em que me espelho não são, nunca foram, os modelos de riqueza, mas os modelos de genialidade, de criatividade, de inventividade que só experiência e prática profissional podem proporcionar. 

Posso em algum momento ter invertido a ordem das coisas e acumulado muita prática e pouquíssima teoria. Mas de alguma forma, tudo só fez a minha trajetória se tornar um pouco mais original.

O diploma de Letras? Vou brincando de usá-lo neste blog até me aposentar. Então vou usá-lo como sempre usei-o a vida inteira: por puro prazer!


















Que venha o 2º período!! 

Gustavo Jonathan Costa
"Porque a vida vale a pena HOJE!"