sexta-feira, 22 de agosto de 2014

ALIVE

(Por favor, se ainda não leu A Única do Mundo eu recomendo que leia antes de prosseguir por aqui...) 


A aventura do conhecimento é libertadora, mas não atinge seu objetivo se não vier acompanhada de doses cavalares de humildade e simplicidade. Não existe nada mais desagradável do que conviver com pseudo-sábios que estão sempre a destilar ao redor de si as honrarias que conquistaram ao longo da vida, por trabalharem em tais e tais lugares e terem feito tais e tais cursos e por isso sentirem que tem autoridade para argumentar sobre todos os assuntos, sem que ninguém lhes tenha perguntado. Ao contrário, quem realmente sofreu as dificuldades do saber reconhece que na verdade sabe muito pouco, ou quase nada a respeito do mundo que o rodeia, e por isso mesmo aprende a colocar-se no seu lugar e valorizar a experiência de cada um. Os verdadeiros sábios permitem que as pessoas do seu convívio descubram sozinhas que estão diante de um sábio, e dessa forma são levadas ao respeito e à admiração, muito maiores do que o que sentem por aqueles que tentam se impor. 

A vida ensina sim, é verdade, mas ensina coisas da VIDA. Existe uma discussão muito acirrada sobre o conhecimento acadêmico e científico versus o conhecimento prático, que sob meu ponto de vista não leva a lugar algum. Os defensores do conhecimento prático, às vezes por preguiça ou ignorância, batem no peito dizendo que "sabem mais do que muito doutorzinho por aí", porque já viu de tudo nessa vida e tem experiência pra contar. Jamais pararam pra pensar na possibilidade de a maioria desses "doutorezinhos" também terem sofrido emoções suficientemente fortes para lhes conferir alguma autoridade sobre a vida, o que nada tem a ver com o conhecimento acadêmico, que é só um recorte verticalizado do saber. Por outro lado, é claro que entre os defensores do academicismo há aqueles que enxergam toda a sabedoria popular como rude e atrasada, e não conseguem compreender como o mundo não se encaixa perfeitamente nos seus perfeitos modelos teóricos. 

A faculdade já me prestou experiências valiosíssimas, além de um diploma em que trocaram o nome da minha mãe pelo nome da minha tia (vai entender!). Cinco anos de Letras e nada na minha vida que me lembre desse período, exceto o fato de ter conquistado grandes amigos e escrever num blog para compartilhar um pouco algumas lições pessoais, aquelas que a vida ensina de maneira tão exemplar que mesmo se tivesse escrito no quadro 1000 vezes não teria aprendido. Uma delas, talvez das maiores, registrei aqui nesse blog, há três anos, mais precisamente no dia 20 de abril de 2011, numa crônica intitulada: Única do Mundo. Naquela época eu vivia muito só, trabalhava e não tinha amigos nem namorada, os estudos iam mal e comecei a dar valor para as pequenas coisas da vida, aqueles ensinamentos que fazem os defensores do conhecimento prático vibrarem. O que a dor de perder pessoas queridas pode nos ensinar foi ilustrado com uma história inusitada... há cerca de 15 anos conheci uma pessoa que se tornou muito amiga, mas depois de algum tempo perdemos contato. Muitos anos depois tentei reavivar nossa amizade, mas foi em vão... De uma forma esdrúxula eu descobri o porquê. Foi assim que escrevi na época:

"Ela já tinha feito uma pesquisa em todos os sites de busca conhecidos por alguém que tivesse o mesmo nome que ela (...) e jamais encontrou uma só homônima. Lembrei-me dessa história e sabia que, se digitasse o nome dela no Google, as únicas ocorrências seriam para ela mesma, e eu poderia ter alguma pista de onde minha amiga andava, que não me dava notícias.

E foi assim em 2009 que descobri que, desde o ano em que eu a vira pela última vez, minha amiga está morta, vítima de um aneurisma cerebral."

A morte tinha interrompido de maneira trágica a vida de uma garota cheia de sonhos como tantas outras, e enquanto eu digitava, as lágrimas brotavam da minha alma e encharcavam meus dedos. A dor de revelar isso foi mais intensa do que a que senti na época, fiquei tanto tempo anestesiado que só em 2011 pude pôr pra fora o que sentia em doses homeopáticas desde 2009. Aos 30 anos ainda não estamos preparados para perder nossos amigos, já tememos por nossos pais, tios, avós, mas jamais pensamos que o mesmo pode acontecer com aqueles de nossa geração. Mas acontece. E quando acontece, somos tomados por aquele impasse, a velha indagação do porquê de tudo isso estar acontecendo, quais os desígnios de um Criador tão bondoso em tirar de perto de nós pessoas tão queridas, às vezes de forma estúpida, imponderável, injustificável... 

Descobri que a busca pela verdade é algo genuíno, mas a afirmação de tê-la encontrado é pura vaidade. Se existe realmente uma Sabedoria Infinita que transcende todo o Universo, de onde me partem as credenciais para Lhe colocar o dedo em riste cobrando explicações? Pois ao mesmo tempo que defendo a "sabedoria dos sábios" humanos, não deveria da mesma forma me curvar diante daquela do Autor de todo o conhecimento? 

Com esse espírito, procurei entender com tudo isso algo que busco compartilhar com quem se dedica a gastar alguns minutos em ler meus textos. A certeza de que "cada vez que deixo de dizer 'eu te amo', corro o risco de ter perdido a última chance, a derradeira chance, de fazer com que quem eu amo saiba de fato que é amado. A distância entre o que foi e o que nunca mais será é muitíssimo pequena, entretanto, o que nunca será e o que poderia ter sido é infinita. Não há vergonha em ser intenso, se isso implica em ser honesto com os próprios sentimentos. Engraçado como a gente gosta de ouvir, mas tem vergonha de dizer. E de não em não, vamos passando pela vida, fechados em nós mesmos, até que o irônico destino se encarregue de tirar de cena os únicos do mundo pelos quais descobrimos tarde demais que esperaram a vida inteira por um simples gesto nosso."

Todos que já passaram pela experiência da perda sabem muito bem o que quero dizer. O que não daríamos pra ter uma última chance de dizer: "puxa vida, obrigado por tudo! Te valorizo muito, você é muito querido por mim". Um minuto, um segundo que seja só pra novamente poder abraçar, ou ver alguém sorrir de novo, sonhar...

Podemos guardar fotos, cartas, mensagens, lembranças... mas jamais trazer alguém de volta. Todos os nossos avanços científicos, pesquisas com células-tronco e replicações do DNA, o conhecimento sobre o Universo e a nanotecnologia não nos fornecem o instrumental necessário para que a Morte seja trapaceada. 

E todos esses anos carrego comigo uma dor silenciosa por conseguir comover a tantas pessoas sem poder contar a uma em especial que ela fez e faz parte de tudo isso, de toda essa descoberta. Dias atrás, passeando por algumas caixas antigas na Casa do Saci (como eu chamo a casa dos meus pais) encontrei um monte de cartas feitas à mão, escritas entre 1999 e 2001 por vários amigos, entre eles essa minha amiga, Ri, uma garotinha na época. Suas cartas eram tão felizes, se dobravam quase como um origami e sua letra era impecável. Ela fazia desenhos nos envelopes e na carta também, falava do futuro como se ele nunca fosse chegar... e não chegou.

Ler de novo aquelas cartas me comoveu muito. No envelope, um endereço de Belo Horizonte que fica tão perto de onde trabalho! E na época, tudo tão difícil, adolescentes dependentes de dinheiro dos pais, sem noção de como pegar ônibus direito em Belo Horizonte, pouco ou nada nos víamos, quando raro falávamos ao telefone e vez ou outra mandávamos cartas. 

Aquele envelope com aquele endereço me despertaram a vontade de visitar a antiga casa da minha amiga, conhecer sua família, saber como aprenderam a viver sem ela, levar minha crônica para que soubessem que também considerei a filha deles uma pessoa muito especial. Planejei essa visita  por algum tempo, sem coragem de encarar a verdade, de aparecer por lá e não me encontrar com ninguém - afinal de contas, nossas cartas eram de 1999!!!! Podiam ter se mudado, morrido todo mundo, quem sabe! Mas eu precisava saber...

Levou alguns dias até que em 21 de agosto de 2014 eu saí do trabalho e coloquei o endereço no meu GPS. Vi o trajeto, dez minutos pra ir, vinte pra voltar pra UFMG, dez a quinze minutos de conversa, no máximo, com alguém da família, entregar minha crônica e ir embora a tempo de chegar às 19h na Universidade. E assim, com o pensamento nas nuvens, ouvi a voz feminina do meu GPS anunciar: você chegou ao seu destino! 

No portão, ainda hesitei em apertar a campainha, pois não sabia o que dizer. Ensaiei algumas palavras, fiquei imaginando quem iria aparecer. Toquei. Esperei longos minutos. Nada.

Toquei novamente. Esperei. Nada. Já ia para o carro quando ouvi uma movimentação. Meu coração gelou. 

Um senhor abriu a porta. - Boa noite, pois não? - disse ele, muito educado.

Eu me aproximei pra que ele ouvisse. Sei que minha voz sai quase inaudível normalmente, ainda mais quando estou nervoso. Com o envelope da minha falecida amiga na mão e minha crônica na outra, perguntei: "por acaso é aqui que morou a Ri"?

"Morou não. Mora!"

"Como senhor?"

"Ela ainda mora aqui. Quer falar com ela?"

"Mas ela não teve um AVC?"

"Sim, há uns onze anos. Ela ainda está se recuperando, mas está bem. Não quer entrar e falar com ela?"

(Vocês vão ler esse texto em sequência... mas aqui eu preciso parar e respirar! Reviver isso... não sei explicar... se é possível traduzir em palavras o que foram atravessar esses trinta metros até entrar em sua  casa...)

E eis que eu vejo assim que passo pela porta da frente...

Meu Deus do Céu..

Em pé, na porta da cozinha, como Lázaro voltando da morte, Ri, viva, sorrindo, me dizendo "boa noite, Gustavo, quanto tempo! Eu me lembro muito de você. Que bom que veio!" Meus olhos se enchendo de lágrimas diante de um pai e uma irmã que não entendiam absolutamente nada! Um turbilhão de coisas passando na minha cabeça e eu só conseguia dizer: Meu Deus, pensava que você tinha morrido! O site da UFMG anunciava que você deu entrada no Hospital com morte cerebral já declarada! Depois disso não houve mais nenhuma notícia sua em nenhuma mídia! Seus últimos registros são de antes do AVC!!!

 E ela estava... está viva!

Esse tempo todo, chorei tantas vezes, queria tanto poder dizer que gostei demais de ter lhe conhecido, que torço pelo seu sucesso, queria lhe contar que estou aos poucos conquistando tudo que quero, tenho uma filha linda, uma companheira maravilhosa, continuo estudando, estou trabalhando numa área espetacular! 

Um abraço guardado há onze anos comoveu pai, irmã e mãe que agora vinha ver quem era o moço que achou que a Ri havia morrido. E eu sabia que, a partir daquele momento, meu mundo havia mudado completamente. Precisava mudar.

Então, se o conhecimento humano não foi capaz de driblar o legado da Morte, a fé para a qual nada é impossível, acabara de tornar realidade algo que eu jamais poderia esperar, que eu jamais ousaria desejar. No dia 21 de Agosto de 2014, o Pai da Sabedoria olhou pra alguém aqui embaixo e realizou algo que milhões, bilhões de pessoas desejaram viver um dia. Uma segunda chance de dizer pra alguém que se foi o quanto ela é especial. E finalmente eu consigo entender o que é que nos move, seres humanos, a acreditar que haverá um dia, um lugar, um tempo, em que todas as nossas aflições poderão ser recompensadas, a fé em que tudo o que vivemos só vale a pena porque temos a certeza do abraço guardado àqueles que à nossa maneira soubemos ou deveríamos ter sabido demonstrar o quanto foram amados.

Ela está viva... Aproveite enquanto os seus também estão!


Abraços e até meu próximo post

Gustavo Jonathan Costa
"Porque a vida vale a pena HOJE"